terça-feira, 6 de julho de 2010

NEGRO,SIM. MAS SER HUMANO ANTES DE TUDO!

Eu não saberia precisar quando foi que eu percebi que existiam cores de peles diferentes. Eu nem sequer saberia dizer quando foi a primeira vez que isso me incomodou. Mas posso garantir, me incomodou muito.

Foi na adolescência que eu percebi nitidamente como a seleção do certo e do errado, do bom e do ruim e do branco e do preto era feita. Pessoas, que até então eram boas e generosas a meu ver, de uma hora para a outra começaram a dar palpites na cor dos meninos que eu não deveria namorar. Amigos que não se misturavam muito com aqueles “neguinhos” da escola ficavam cada vez mais distantes. Professores que deveriam exercer papel fundamental para se esclarecer tamanho disparate, não se mostravam comprometidos com o assunto. E foi só no cursinho, num colégio particular, que um professor de geografia me chamou atenção para o uso da conjunção “mas” em algumas frases do tipo:


“Tá vendo aquele pretinho ali? Aquele bem preto mesmo?”
“Sei”
“Então, ele é preto assim, mas é muito bonzinho. Precisa ver que menino generoso.”


E eu, no auge da minha descoberta da Língua Portuguesa fiquei sem entender o que o “mas” tinha a ver com tudo isso. É como se sua função fosse demarcar o contraste dessa sentença. “Como alguém pode ser preto e bonzinho?”
Mas minha dúvida não parava por aí, não. Preto? Eu reparei que ninguém era bem preto, nem bem branco. Que não existiam pessoas bem vermelhas, assim como não existiam os amarelos. Eu reparei que as nuances das cores de cada ser humano, individualmente eram muito mais sofisticadas do que nossa capacidade intelectual poderia atingir. Eu compreendi também que todas aquelas piadinhas, que já tinham me feito rir tanto, acabara de perder completamente a graça. Eu me vi do lado de cá da raça. Eu, uma menina de 16 anos, branca, paulista, começava (e era só o começo mesmo) mensurar o tamanho do problema de daltonismo que afligia o nosso país. E acho que eu não poderia encontrar definição melhor para toda essa celeuma em torno dos negros. Vocês sabiam que o Daltonismo pode ter origem genética? (E não é assim que o preconceito se forma?) Mas também pode ser resultado de uma lesão visual ou neurológica. (E também não é daí, da mente humana, que nasce o racismo?)
Pois bem, após essa iniciação entre os signos sagrados da hipócrita sociedade brasileira, aos 19 anos me mudei para Toronto, Canadá. E mesmo que todos esses conceitos raciais não fossem presentes na minha vida todo instante, eu não podia deixar de reparar como os negros canadenses eram diferentes dos nossos. Eles são belos e se comportam como belos, como inteligentes, como iguais. Eu presenciei várias meninas negras, andando de nariz empinado perto de uma norte-americanazinha branca. Via os meninos negros, jogando basquete, no ápice de seus corpos volumosos, suados e, negros sim por que não?
Eu não posso falar com inteira propriedade do que é ser negro no Canadá, mas o que pude perceber é que não é nada de tão diferente do que ser branco. Pelo menos para os adolescentes, claro. Eles agem naturalmente. Se sentem e se vêem tão ou mais capazes do que qualquer outra pessoa, independente da cor de sua pele. Eu pensava, por que não pode ser assim no Brasil também?
Passado algum tempo, volto ao Brasil e decido morar em Salvador. Era um velho sonho. Tudo o que tinha a ver com a Bahia me encantava, desde bem pequenininha. Meu desejo maior era enfim saber que gosto tinha o acarajé. E foi aí que minhas percepções de raça, de etnia, de cor se definiam de vez.
Eu trouxe comigo uma bagagem grande de pré-conceitos de São Paulo. Conceitos esses que se transformaram de certa forma no Canadá, até por se tratar de um país onde a identidade pura canadense é muito difícil de achar, por questões de colonização, imigração e tudo o mais. E agora era dada a mim uma oportunidade, talvez única, de entender melhor como o racismo chega aos negros. Era minha vez de estar do outro lado e poder acabar com o conceito, por exemplo, que ser ou estar baiano é sinônimo de ser ou estar mal vestido, cafona, fora de moda, com combinações de cores bizarras. Foi assim que eu conheci, de fato, a identidade negra, no berço negro do nosso país. Foi onde eu vi a real beleza desse povo que também sou eu, que também é minha família. Entendi que todo esse bate-papo em volta da predileção de uma ração em detrimento à outra é pura perda de tempo. Nós somos todos, parte de uma nação única e plural. Que cada um tem sua origem num canto distinto do Mundo. Que enquanto meus pais e avós vêm da Itália, a família do meu marido vem da África. E que agora nosso filho não vem nem da África nem da Itália, mas sim do Brasil que abriga toda a Europa, Ásia, Oceania, África e Américas e faz desse novo cidadão, alguém multicultural, com sangue puramente vermelho, porque essa é a cor natural do sangue. Um cidadão com a pele de cor única, a dele. Pois ele não é nem mais negro nem mais branco que seus pais. Ele é ele. E não tem obrigação de ser mais nada além disso.

9 comentários:

  1. Texto completo, maravilhoso e deixo aqui uma das frases de Bob Marley "Em quanto a cor da pele for mais importante que o brilho dos olhos havera guerra." (Bob Marley).
    Bjus, boa semana.

    Salete

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  2. Muito bonito o seu texto, parabéns! Ainda mais no contexto da copa do mundo que terminou agora, na África do Sul. Percebe-se que foi uma das copas mais animadas de todas e que a África tem um povo lindo e sonhador. Mas tomara que em 2014, no Brasil, seja ainda melhor!

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  3. Texto maravilhoso e nos abrindo a possibilidade de pensarmos que cores são apenas para dar alegria a todas as coisas e não para separar raças. Preto é simplismente preto assim como o branco ou outra qualquer. O ser humano jamais deveria ser considerado ou não pela cor da pele e isso não diz respeito só aos negros mas aos brancos tbem. Somos todos iguais e irmãos de coração. MARCIA 11 DE AGOSTO DE 2010

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  4. Bem, promessa é dívida, aqui estamos! Não queremos ser chatos, mas...
    Olha só o "mas"... (A adversativa que te chamou tanto atenção na adolescência...) iremos nos apegar aos detalhes da tua fala.
    Vamos lá, gostaríamos de analisar, primeiramente, mas não isoladamente, o título do texto. Então, relacionando-o ao teor de suas articulações, perguntamos: Pq o título vem SOMENTE com a palavra NEGRO, distinguindo-o? Se a idéia de raça, enquanto diferenciação fenotípica precisa ser abolida (o que precisa mesmo, mas no sentido sincero, e não no sentido que está sendo posto pela sociedade “burguesa”...), não façamos tal distinção. “SER HUMANO ANTES DE TUDO”, pronto! Assim estaria bem dito (bendito!). Sem demarcações.

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  5. Adentrando de “fato” no texto, nós também não saberíamos precisar quando percebemos que existia o “racismo”, pq tom de pele diferente, percebemos desde sempre, mas racismos?! Bem, o racismo não foi desde sempre que percebemos, levou um tempinho, mas percebemos cedo, muito cedo, só não conseguíamos verbalizar nem identificar o pq, mas perceber e sentir... Foi inevitável, mesmo pq, nós, negros no Brasil, somos demarcados por este contraste, nem todo mundo nos chama pelo nome, e sim pela cor, “vem cá minha neguinha”, ou ainda por outras marcas fenotípicas que caracterizam necessariamente o povo negro, como: “beiçola, bundão, pixainzinho, etc, etc.” E para além disso, aquelas piadas das quais vc diz um dia já ter rido, talvez sem entender o pq do riso, eram direcionadas a nós, que não riamos, exatamente por entender dele. O que fazia ainda com que essa consciência, essa demarcação de cores e raças chagasse a nó mais rapidamente e da forma mais cruel possível, pelo riso, que parece coisa boa, mas só é bom pra quem ri e não para quem é “rido”.

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  6. Queremos dizer que, sim, gostamos muito do rumo do texto. Que adoramos sua tomada de consciência e a atitude de escrevê-la e por tanto, de exibi-la para que todos tenham contato. E sim: “as nuances das cores de cada ser humano, individualmente são muito mais sofisticadas do que nossa capacidade intelectual pode atingir”, o problema continua no “mas”. Mas nem todo mundo pensa assim. Quanto a daltonismo, bem, acho que nossas questões estão para muito além disso, da biologia, “elas, quero dizer, algumas pessoas” sabem exatamente o que querem e o que vêem quando são “daltônicas”. Quando ensinam justamente as noções de “superioridade” e “inferioridade” ou invés da de “diferença”. São questões que tocam na biologia, na história, na antropologia, em muitas ciências e taca toda hora e tudo junto, sabe?

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  7. O direito de não precisar ser “rido” por ninguém por conta da nossa cor, o direito de ser chamado mais pelo nome deveria vir antes do que sermos chamados pela cor da nossa pele. Sei que vc pode argumentar: mas os brancos também são chamados de “branquinhos”, mas... qual é a proporção disso? Primeira coisa e, a segunda coisa é: desde quando? Nós somos assim trados desde que negro é negro no Brasil, e os brancos, desde essa época também?(...) Fica para reflexão!
    Quanto a baianidade ser mal vestida e fazer combinações bizarras, que maldade dos paulistanos, hein... (sem comentários!). Todos em Sampa são bem vestidos, é? Só não me responda que somente os nordestinos é que são tidos como mal vestidos por aí... Pq se for isso, nunca mais ponho meus pés neste lugar. Sou negra, baiana e muito bem vestida, obrigada! Isso quando eu quero, pq quando não quero, visto meus maltrapilhos também, o que é que tem?

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  8. Para finalizar, só gostaríamos de chamar tua atenção para uma coisa, veja o que foi preciso acontecer na tua vida para vc chegar a essa conclusão toda... Entrar num cursinho, ir ao Canadá, conhecer a Bahia. Se a tua trajetória foi esta, imagine o que precisamos nós, os do lado de cá, que não fomos ao Canadá, não fomos à Bahia, etc, etc e que, principalmente, aprendemos todos os dias, e o pior, muitas vezes “sem nos darmos conta”, a sermos racistas e preconceituosos, seja lá qual for o tipo de preconceito que aprendemos (aprendamos) para chegarmos as tuas conclusões?! Isso falando do lugar comum, não necessariamente do nosso, que estudamos, e se não vamos ao Canadá ou à Salvador, vamos aos livros, e quem não vai? E quem só aprende na oralidade, na conversa? Apesar de eu e vc estarmos falando e pondo em pauta isso, a grande maioria, infelizmente, ainda não o faz, muito pelo contrário, mas tua/nossa postura, é um ótimo começo!

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  9. Beijos sempre Vermelhos, Mi e ChicO, adorando saber que tem gente se preocupando com isso. Só para que fique feliz, em nossas aulas estamos falando muito de linguístca, preconceito linguístico... Vc também não está sozinha na luta da Linguística!

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